quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Marco Aurélio Ferraz: "Rompendo Silêncios: alunos especiais narram suas histórias"

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Costurado pela analogia ao mar e seus mistérios, navego no
movimento de idas e vindas, sem um porto estável onde aportar.
A Nau dos Insensatos que inspirou a introdução do referido projeto, é descrita por Michel Foucault em “A História da Loucura” (1961) e tem o mesmo sentido que as Naus dos loucos ou insensatos da Idade Média, “navios que carregavam insanos em
busca da razão”, um estranho barco que deslizava pelos rios e mares, levando uma carga insana, partia sem um rumo definido. Os tripulantes embarcavam em uma viagem sem fim, flutuando num mar sem fim, sem bordas, sem ancoragem.

Os alunos das escolas especiais, diferente dos loucos da Idade Média, foram nomeados Portadores de Necessidades Educativas Especiais e estão sendo “convidados” a embarcarem em uma Nau, em sentido metafórico, para um lugar pré-determinado, a escola regular, e, como os insensatos do início da modernidade, não escolheram partir nesta viagem, o convite para essa travessia foi feito por estranhos.

Ao chegar neste novo lugar, a escola regular, talvez sejam recebidos como estrangeiros, pois seu jeito de comunicar- se e aprender, são distintos. Alguns deles com seus corpos marcados são mais diferentes que os diferentes daquele lugar.

Com os estudos, tenho observado que o movimento dos alunos com deficiência mental, entre os fenômenos da inclusão e exclusão na escola regular e/ou na escola especial, tem tido visibilidade. É notório o aumento da clientela. Observando dados da vida escolar dos alunos, percebo que sua vida escolar é repleta de momentos onde os fracassos aparecem em destaque, obscurecendo de alguma forma as pequenas conquistas.

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Não pretendo apresentar novas verdades, pois acredito que elas não existam, mas refletir sobre novas perspectivas que os Estudos Culturais permitem para tratar um tema tão importante como é a inclusão, vista neste projeto sob a ótica dos próprios alunos.

Inspirado pelas idéias de Michel Foucault, permito-me identificar esses alunos com os chamados anormais, considerando a busca insistente de colocá-los em uma determinada norma que os capture, que lhes normatize, para com isso conduzi-los à normalidade.
Pronunciado no Collége de France, de janeiro a março de 1975, o curso sobre “Os Anormais” dá continuidade às análises que Michel Foucault consagrou a partir de 1970, aprofundando questões como saber, poder, normalização e biopoder. É a partir de múltiplas fontes, jurídicas e médicas, entre outras, que Foucault aborda o problema desses indivíduos “perigosos” que no século XIX eram chamados de “anormais”, destacando a formação de um saber e de um poder de normalização. A partir dessa discussão poderia dizer que esses eram os indivíduos que de uma forma ou outra escapavam a uma norma, porém, eram capturados por outras, considerando que ninguém escapa a norma. Segundo o mesmo autor são três as figuras principais de caracterização dos anormais: os monstros, os incorrigíveis e os onanistas.

Sendo assim o indivíduo considerado anormal é aquele que segundo o referido autor deriva-se ao mesmo tempo da exceção jurídico-natural do monstro das multidões, dos incorrigíveis, detidos pelos aparelhos de adestramento, e do universal secreto das sexualidades infantis.

Na lógica de uma reflexão atual sobre a sociedade e o princípio de exclusão, ainda percebendo o quanto os discursos dos alunos da Escola Especial, estão envoltos nestas lógicas, reporto-me a época da alta Idade Média, na oposição razão e loucura. “O louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros”. Hoje os alunos com necessidades educativas especiais, poderiam ser facilmente comparados aos loucos da Idade Média, pois o olhar a eles lançado ainda é de estranheza, ainda é preciso romper as barreiras do silêncio, das palavras ingênuas, para que os mesmos possam ter na expressão desses discursos, as suas idéias compreendidas.

Pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. (Focault.1970. p.11)

Apesar de considerar que o conceito de loucura aproxima-se muito mais da Doença Mental do que da Deficiência Mental, este termo é utilizado no texto como elemento de costura no resgate histórico das posições tomadas, em nome da normalidade, o que de fato aproximaria os indivíduos aqui estudados das duas
vertentes.

Em “A História da loucura” por exemplo, Foucault revela a trajetória dos muitos séculos, durante os quais a palavra do louco não era ouvida e se ouvida, o era com ouvido que a filtrava como dotada de uma razão ingênua ou astuciosa. O primeiro passo no estudo independência da condição da deficiência e doença mental ocorreu noinício do Século XIX, quando se estabeleceu a diferenciação entre idiotia e a loucura. Existe uma tendência mundial de estar reconhecendo o termo Doença Mental como transtorno Mental e Deficiência Mental como deficiência intelectual como um discurso diferente, do lugar de quem poderia exercer uma razão mais razoável do que a das pessoas razoáveis. Por volta do século XVIII a palavra dos loucos passa aser o mecanismo pelo qual era reconhecida sua própria loucura, então o que era dito é observado como e por que era dito, essa palavra passa a fazer a diferença.

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(...)No entanto passei a observar que faltava nestes fóruns a fala dos alunos. Tal situação começou a fazer parte de minhas inquietações, perguntava-me: por que os alunos não são chamados a falar?. Será pela crença de que por serem deficientes mentais suas opiniões seriam teoricamente desprovidas de certa racionalidade, o que tornaria de
imediato sua fala sem sentido? Por essa fala não estar inscrita, em um padrão de normalidade, estaria em uma outra ordem do discurso, que não a esperada por quem faz as leis? Se considerarmos que há então um discurso capaz de contribuir para a qualificação do processo de inclusão, como dar visibilidade a este discurso?
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