sábado, 11 de setembro de 2010

ESTAMIRA E A HISTÓRIA DA LOUCURA

ESTE TEXTO ABAIXO, ESCRITO POR TOMÁZIO AGUIRRE, REFLETE PENSAMENTOS IMPORTANTES SOBRE NOSSO DISCURSO ACADÊMICO DIÁRIO, E ACHEI OPORTUNO POSTÁ-LO COMO FUTURA REFLEXÃO. PARA ÁQUELES QUE LERAM O TEXTO DE MICHEL FOUCAUL E A HISTÓRIA DA LOUCURA,HÁ UMA IDENTIFICAÇÃO CLARA.
FOI USADA NESTA POSTAGEM UM DOCUMENTÁRIO IMPERDÍVEL PARA TODOS QUE QUEREM ENTENDER A LOUCURA NUMA VISÃO AUTO EXPLICATIVA DE UMA ESQUIZOFRÊNICA...SENSACIONAL...ALUCINANTE!!!!
SUGIRO UMA OFICINA PARA QUE TODOS VEJAM O FILME E DEBATAM!!!

SEGUE ABAIXO UM PEDAÇO DO DOCUMENTÁRIO - TODAS AS PARTES ESTÃO DISPONÍVEIS NO YOUTUBE
http://www.youtube.com/watch?v=MQ9UavYxLXc&feature=related

ESTAMIRA E A LOUCURA
por Tomázio Aguirre

Vou tentar responder rapidamente a uma pergunta que poucas pessoas que ainda gostam de compreender as coisas têm se feito, já que as ciências aplicadas, como psiquiatria, psicologia e antropologia, têm se restringido a retóricas em torno dos temas que abordam, à medida que se concentram em pequenas disputas de poder institucionais e preciosismos pessoais. A pergunta é: O que é a loucura? E, mais particularmente, o que é a loucura no Brasil?

Vou responder usando um documentário muitíssimo instrutivo, de Marcos Prado, chamado Estamira (http://www.estamira.com.br/)sobre uma mulher louca (oficialmente esquizofrênica) moradora de um lixão no Rio de Janeiro.

Para começar, esqueçam o lugar-comum: a crença mundialmente difundida de que a loucura é uma doença do cérebro, de nome esquizofrenia, e a crença de que quem dela entenderia seriam os psiquiatras ou profissionais da “saúde mental”. Alguns poucos, raríssimos profissionais, sim, ainda se esforçam para não serem apenas cegos num tiroteio, mas a maioria deles não entende nada sobre loucura. São apenas práticos, prescritores de remédios ou de terapias vazias, mas sem compreender a essência daquilo com o que lidam. Também os antipsiquiatras, psicólogos e antropólogos têm se convertido apenas em ilusionistas, ideólogos, às vezes bem intencionados, que querem salvar o mundo, começando pelos loucos, mas pouco entendendendo daquilo a que se referem. Apenas tentam arregimentar seguidores, e muitas vezes conseguem. O Brasil é um país de messiânicos.

Quem atualmente estuda radicalmente a loucura se envolve com a junção de filosofia ontológica, antropologia filosófica e um pouco de antropologia social e de antropologia biológica, ou evolutiva, mas de um modo que não tem aparecido no academicismo brasileiro, e praticamente em academicismo algum, já que este tem se reduzido a disputas por bolsas de pesquisa, vaidades e dinheiro, sobrando muito pouco além disso. Nesse percurso, a medicina tem sido entendida apenas como uma "ciência" com técnicas para fins específicos, porém com explicações falsas sobre o ser humano - embora acreditadas popularmente como verdadeiras (do mesmo modo como popularmente se acreditava em demônios e paraísos celestiais na baixa idade média - e ainda se acredita no Brasil). Ou seja, a visão psiquiátrica sobre loucura é, em essência, uma questão de fé. E as demais visões da psicologia e antropologias que se popularizaram, muitas vezes concorrendo com a visão psiquiátrica, nada mais são do que uma espécie de "reforma protestante" da psiquiatria - apenas dogmas alternativos, porém nada além de novos dogmas.

O Brasil é um país infestado de loucos em hospícios, nas ruas, amarrados em quartinhos de fundo de quintal, trancados nas delegacias ou estendidos nos IMLs. Mas muito pouco, por aqui (como tudo o mais), se discute seriamente (se é que dá pra levar discussões intelectuais a sério atualmente) o que vem a ser a loucura humana.

Curiosamente, fui surpreendido pelo documentário Estamira, que é justamente interessante por não apresentar voz de narradores ou especialistas da psiquiatria, da saúde mental, da psicologia ou da antropologia brasileira abrindo a boca para explicar o que estava sendo mostrado. O documentário é apenas a voz de uma louca se auto-explicando, e explicando o mundo que a fez ser como é, e no qual ela vive do jeito que é possível: bruta, enraivecida, solitária, sofrida, que prefere viver no meio do lixo, cercada de outros restos humanos como ela, do que com sua família; vendo o mundo como um lugar de violência, conspirações, barbaridades, falsidades, genocídio, em que cada um tem que ser seu próprio herói, seu próprio deus, seu próprio mito e seu próprio guia, auto-construindo seu próprio sentido de vida; porque tudo o mais além do que a própria pessoa pode inventar para si mesma são mentiras que a levarão no máximo a uma vala comum de indigentes, de bandidos ou de loucos humanizados, medicados e intolerados.

Sei que após a década de 1960 loucura passou a ser sinônimo de "rebeldia", de "transgressão", de "desbunde", de "porralouquice", e muitos bem-nascidos passaram a ter um certo prazer em se auto-denominar ou se exibir como loucos, diferentes, extravagantes, viajandões, rebeldes, etc. Mas não é a este deleite burguês que me refiro como loucura.

Também não me refiro aos "loucos artistas", a associação tipicamente modernosa entre a loucura e a “arte", a contemplação estética burguesa, de vanguardas européias criando o estranho para chocar e para escandalizar, ou mesmo para se expressar existencialmente. Nem me refiro às ideologias que querem ver no louco, assim como em índios ou em quaisquer outras minorias, um ser de valor cultural que poderia salvar o decadente homem moderno de sua autodestruição. Nada, portanto, de dar pincelzinho pra meia dúzia de condenados, trancados em hospícios ou lugares similares, ficarem fazendo umas telas ridículas com as quais passam a ser ovacionados como “artistas”. Isso tudo quase nada tem a ver com a loucura dos milhões de loucos brasileiros que andam se arrebentando ou sendo arrebentados em sua loucura; tem apenas a ver com utopias intelectuais e humanistas.

Estou aqui falando da loucura trágica, da loucura catástrofe, da loucura fim-de-mundo, da loucura que leva um sujeito a se desesperar e a viver em um mundo delirante próprio, solitário, correndo pelas ruas e rejeitando a vida com os demais seres humanos, e sendo ao mesmo tempo rejeitado por todos, como seres indesejáveis e insuportáveis. Loucura esta que a Estamira do documentário expressa aos berros, sem ter sido silenciada por drogas, caridade, psicologias, polícia ou assassinato - que é o fim que tem levado a maioria dos milhões de loucos reais desse país. Mas curioso é que, por ser o Brasil um país que não se civilizou, Estamira conseguiu escapar a todas essas armadilhas modernas para os inadaptados, sobrevivendo sem ser silenciada e ainda indo parar em um filme. Trágica contradição deste país moribundo: apenas no caos a loucura tem voz própria. A Alemanha não deixou nem mesmo Nietzsche continuar berrando audivelmente depois de ter se tornado oficialmente doido. Mas aqui os loucos conseguem fugir ao controle social.

Essa loucura real, de loucos reais, subumanos, e não dos desejosos de serem artistas ou transgressores em suas "modinhas" intelectuais, é a solidão extrema e total a que o ser humano pode chegar; é quando tudo que existe aos olhos de todos os outros deixa de fazer sentido, só restando à pessoa reinventar solitariamente seu próprio mundo, sua própria crença, seus próprios fantasmas, seus próprios ídolos míticos, sua própria identidade, a par de todos, diferentemente de todos os outros em suas ilusões compartilhadas coletivamente.

A Estamira do filme foi uma mulher brasileira comum até o período da vida em que a sucessão de atos típicos do caos nacional a levaram a não mais conseguir acreditar e sentir o mundo como ela fazia até então, com valores morais cristãos, acreditando em um Deus bom, protetor e coerente, sendo boa mãe, cordial, limpa, educada, contida e auto-controlada - este era seu ideal de ser humano. Mas quando a realidade do caos ao seu redor desnudou todas essas suas fantasias morais e ilusões de um mundo que não mais existia, ela tornou-se uma pessoa sem "mundo" no qual acreditar: perdeu seus valores e suas ilusões necessárias à vida compartilhada com outras pessoas, e não conseguiu ter novas ilusões (crenças, ou sentidos para a vida), no lugar das anteriores. Ao contrário, em seu mundo anterior à loucura, a brutalidade real da vida brasileira não podia existir, e quando esta brutalidade foi escancarada em sua vida, sucessivamente, com estupros, violências e caos sem coerência, ela tornou-se uma pessoa sem um mundo dotado de sentido. Ela tornou-se um vazio existencial completo, um ser amorfo, com restos de identidades fragmentadas, com resquícios de valores morais contra os quais agora passava a lutar, por sabê-los irreais, com restos de crenças em Deus e coisas do tipo das quais agora tinha apenas raiva - por ter se descoberto uma pessoa enganada quanto a si mesma e quanto ao mundo real, brutal, caótico, genocida, no qual o ser humano não tem valor algum, a não ser em jogos de palavras hipócritas, com falsos humanismos – ou seja, o típico mundo da pobreza urbana brasileira, cercado de violênicia e de intelectuais humanistas, de médicos e de políticos profissionais.

Assim amorfa, aos olhos dos outros ela tornou-se louca, alguém a quem não se dá crédito, a quem não se compreende, com quem não se consegue compartilhar opiniões e crenças. Se lhe dessem ouvido, e se compreendessem o que ela fala, somado ao que falam os milhões de loucos brasileiros que não têm voz (por isso são loucos aos olhos dos outros), e sobre os quais não se faz filmes, viria à tona a realidade de um país e de um mundo de que a maioria da população não quer saber - preferindo todos continuar vivendo em seus estragados castelos de areia. Os loucos trariam à tona um país brutal, catastrófico, apocalíptico, um povo se auto-destruindo e ainda tendo que se acreditar alegre, carnavalesco e humanista-cristão.


Mas quem ainda quiser tentar ver este país para além de suas ilusões, basta parar de assistir Matrix, de jogar videogame, de fumar maconha, e assistir Estamira; e, principalmente, basta abrir os olhos e a mente para o que está ao seu redor - se conseguir. O Brasil apocalíptico de Estamira está escancarado. Pena que os cristãos e humanistas brasileiros irão apenas achar o filme bonito, com boa fotografia, com uma personagem cativante e digna de ser celebrada como pobre e excluída, por quem se deveria lutar ardorosamente por "inclusão social" e dignidade. Mas isto é apenas parte da ilusão dos que querem coletivamente continuar sonhando com um país que não existe e nunca existirá.

3 comentários:

  1. MAIS UM PEDACINHO DO TRAILER
    http://www.youtube.com/watch?v=v9ik-M5k0K4

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  2. ME SENTI UMA ORDINÁRIA...GRAÇAS A DEUS...EU QUE ACHAVA SER O SUJEITO DO SABER...QUANDO VI O DOCUMENTÁRIO ME COLOQUEI ONDE NÃO DEVERIA TER SAIDO...SOU UM SUJEITO COMUM,ORDINÁRIO, NEM PERITO E NEM SÁBIO...SEI POUCO DE MIM E MUITO MENOS DO OUTRO...DAQUELE QUE ADVÉM...
    O LOUCO QUE TEM SUA VERDADE E SUA RAZÃO É TÃO EXPLICITADA NESTE DOCUMENTÁRIO...FOI OPORTUNO ACHÁ-LO E DEVANEAR EM SUAS CENAS...ESTA ESTAMIRA : A VOZ MIDIÁTICA DA LOUCURA...POIS QUANDO TRANSFORMADA EM FILME, FOI ESCUTADA...NÃO MAIS COMO LOUCA...MAS COMO UM SER QUE TRANSBORDA VERDADES E INTOLERÂNCIAS...FALA O QUE MUITOS GOSTARIAM DE FALAR...FAZ O QUE MUITOS GOSTARIAM DE FAZER...ARROTAR DIANTE DE MILHÕES DE EXPECTADORES BURGUESES...MAS A DISCIPLINA? FICA A MARGEM DOS MARGINALIZADOS...POBRE DE MIM...
    QUANTAS ESTAMIRAS PODEMOS ENCONTRAR NO MUNDO...SUJEITOS DO SUPOSTO SABER...

    BJOSSSSSSSS

    KATIA MAFRA -

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  3. O homem moderno não se comunica mais com o louco: de uma parte há o homem da razão, que delega a loucura ao médico e que autoriza apenas a relação com a universalidade abstrata da doença; de outra parte há o homem da loucura, que se comunica com o outro apenas por intermédio de razões tão abstratas como são a ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo e a exigência de conformidade (Foucault, 1961, p. 160).

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