domingo, 19 de setembro de 2010

Mundo Correcional

No processo de apropriação da loucura pela medicina o conceito de alienação tem um papel estratégico, no momento em que torna-se sinônimo de erro; algo não mais da ordem do sobrenatural, de uma natureza estranha à razão, mas uma desordem desta. A alienação é entendida como um distúrbio das paixões humanas, que incapacita o sujeito de partilhar do pacto social.
Alienado é o que está fora de si, fora da realidade, é o que tem alterada a sua possibilidade de juízo. Através do conceito de alienação o modo de relacionamento da sociedade para com a loucura passa a ser profundamente intermediado por uma ciência que, num primeiro momento, Philippe Pinel define como o alienismo. Se o alienado é incapaz do juízo, incapaz da verdade, é, por extensão, perigoso, para si e para os demais.
A argumentação de Pinel a favor da institucionalização tem como base dois pontos fundamentais relacionados ao conceito de isolamento. Por um lado, no princípio do hospital como lugar de exame, em que isolar é o a priori do conhecer, tal qual no método da Botânica de Lineu, explicitado por Pinel em seu Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale ou la manie como o método mais adequado à ciência. Por outro lado, o isolamento é terapêutico pois a instituição passa a ser organizada de forma a afastar as influências maléficas, morbígenas, que causam e agravam a alienação: a instituição é o instrumento de cura.
O isolamento, semelhante ao estado in vitro, afasta as influências maléficas e a contaminação. O afastamento serve para identificar diferenças entre os objetos. Distinguir os "mansos" dos "agitados", os "melancólicos" dos "sórdidos" e "imundos", os "suicidas", ou seja, esquadrinhar cada tipo classificável, evitando que sua convivência agrave seu estado. O hospício, através do isolamento terapêutico, permite a possibilidade da cura e do conhecimento da loucura a um só tempo. O isolamento é ao mesmo tempo um ato terapêutico (tratamento moral e cura), epistemológico (ato de conhecimento) e social (louco perigoso, sujeito irracional).

Essas operações, como princípios teóricos e atos institucionais propiciam um método; fazem "ver" diferente a figura do louco, agora um "alienado mental", produzem uma visibilidade específica sobre a loucura, construindo um estar louco e um ser louco diferente, no qual o tratamento fundamental é regrar novamente, "dobrar o alienado à razão", numa espécie de ortopedia da alma. Surge o mundo correcional, no qual a disciplina proporciona um retorno à razão. O conceito de "alienação" produz um lugar para o louco, excluído do pacto social, o lugar do sujeito da desrazão ou da ausência de sujeito - sujeito racional e responsável cívica e legalmente - sujeito delirante sem cidadania que deixa de ser um ator social para tornar-se objeto do alienismo.

A história do manicômio mostra como se criou o processo de lidar com o sujeito alienado, alheio, estrangeiro a si próprio, que não é sujeito. No manicômio coloca-se em funcionamento a regra, a disciplina e o tratamento moral para a reeducação do alienado, através do que se torna possível a construção do conceito de uma subjetividade alienada, desregrada. Ao mesmo tempo, a instituição torna-se o lugar de tratamento e a institucionalização, uma necessidade.

Eduardo Henrique Guimarães Torre
Paulo Amarante

2 comentários:

  1. Esse Ser alienado, é cada vez mais evidente em nossos dias. Conceituado como portador de uma subjetividade alienada, desregrada, sofre por não estar classificado numa categoria dos ditos "normais". É rechaçado dos demais por não querer aceitar certas regras ou mesmo por externalizar suas vontades e suas razões...
    Fica á margem de quem aplica leis e a institucionaliza, muito mais de acordo com as necessidades sociais do que patológicas...

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